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A IRMÃ DE LEITE DA PRINCESA



romance publicado todos os domingos em episódios sequenciais
autor: Jorge Francisco Martins de Freitas

Episódio 39

Por volta das oito horas da noite, uma carruagem leva Maria Isabel, as duas rainhas viúvas e D. Manuel para o Palácio das Necessidades, seguidos, pouco depois, por três coches. Os dois primeiros transportam, respetivamente, os restos mortais de Sua Majestade o Rei e de Sua Alteza o Príncipe Real. No terceiro seguem sacerdotes.

Os corpos reais permanecem, durante cinco dias, numa câmara, cobertos pela bandeira azul e branca da monarquia portuguesa.

No dia 6, à meia-noite, são transportados para a capela do palácio.

Apenas sete dias após o atentado, são conduzidos ao seu destino final: a Igreja de São Vicente de Fora.

Rei morto, rei posto. Portugal passa a ter um novo monarca: D. Manuel II.

Quando a Marquesa de Marinhais foi perceptora de D. Carlos já era expectável que este viria um dia a reinar, mas nunca imaginou, ao cuidar da educação de D. Manuel, que ele também se tornaria Rei de Portugal, pois essa função caberia, por direito próprio, ao seu irmão mais velho, o falecido infante D. Luís Filipe.

Para além dos ensinamentos prestado por Maria Isabel, D. Manuel II recebeu igualmente aulas ministradas por diversas figuras das letras e das ciências, mas a sua formação política foi muito limitada, pois não se previa que um dia viesse a ascender ao trono.

Estudou francês, história e música, tendo contado, nesta última área, com o contributo do professor Alexandre Rey Colaço.

Na companhia da mãe, viajou até ao Egito no iate real D. Amélia, o que, para além de lhe proporcionar conhecimentos sobre civilizações antigas, lhe criou o gosto pelo mar, incentivando-o a seguir uma carreira na Marinha.

A 2 de fevereiro de 1908, no dia seguinte ao atentado, D. Manuel II reúne o Conselho de Estado, com a participação de João Franco, José Luciano, Júlio de Vilhena, António de Azevedo, Pimentel Pinto, José de Novais e Melo e Sousa. Durante o decorrer dos trabalhos, João Franco é demitido do cargo de primeiro-ministro, sob a alegação que o regicídio se ficara a dever à política ditatorial por ele imposta à nação. Em sua substituição, é nomeado para aquele cargo o Almirante Francisco Joaquim Ferreira do Amaral, à frente de um governo consensual.

Os ânimos acalmam um pouco, mas a posição monárquica sai fragilizada, sendo vista pelos republicanos como uma fraqueza.

Nas cortes reunidas a 6 de maio de 1908, D. Manuel II é solenemente aclamado Rei, jurando cumprir a Carta Constitucional.

A 5 de abril, ocorrem as primeiras eleições legislativas realizadas no seu reinado.

Há algum tempo que Michel Laurent sente dificuldades respiratórias, desconforto no centro do peito, sensações de enjoio, tonturas e suores frios, autodiagnosticando sofrer de uma doença cardiovascular. Maria Isabel várias vezes lhe pergunta a que se deve a palidez que este regularmente apresenta, mas o marido nunca se pronuncia sobre a doença que o atormenta, para não a apoquentar.

A 13 de novembro de 1908, o marido de Maria Isabel começa a sentir-se muito mal quando atendia um doente no Hospital Colonial, caindo no chão inanimado. Os colegas acorrem em seu auxílio, mas, infelizmente, já nada havia a fazer para o salvar.

A Marquesa de Marinhais sofre atrozmente com a morte do marido e Pedro Laurent fica devastado com a perda do pai, por quem detinha o maior respeito e admiração.

O funeral ocorre três dias mais tarde, com a presença de três elementos da família real: D. Manuel II, D. Amélia e D. Maria Pia.

De regresso ao palácio, Maria Isabel decide entregar definitivamente a administração das suas propriedades a Pedro Laurent, passando longas temporadas nos seus aposentos, escrevendo uma autobiografia e reunindo os poemas que escrevera ao longo da vida para que os mesmos fossem publicados após a sua morte.

A 1 de janeiro de 1909, D. Manuel II recebe, em audiência, os dignatários estrangeiros acreditados em Portugal, costume protocolar que ocorre sempre no primeiro dia do ano.

Influenciado pelos princípios de igualdade entre todos os seres humanos que lhe foram incutidos pela Marquesa de Marinhais, D. Manuel II recusa ser contemplado com o “beija-mão real”.

A deficiente situação económica dos seus concidadãos aflige-o, mas pouco pode fazer, pois a carta Constitucional não lhe permite intervir nos assuntos do governo.

A fraca industrialização de Portugal no início do século XX não contribui para a existência de um vasto proletariado urbano, como sucede em outros países, mas, mesmo assim, o partido republicano exacerba as carências do reduzido número de cidadãos que trabalha em fábricas e reúne em seu redor todos os descontentes com a grave situação económica que o país atravessa.

Para pôr cobro ao empobrecimento geral da população e ao cada vez maior impacto do Partido Republicano, em julho de 1910, o governo de Teixeira Santos cria uma comissão com o intuito de estudar o estabelecimento de um Instituto de Trabalho Nacional.

Esta medida é aprovada em setembro, mas já chega tarde, pois, a 2 de outubro de 1910, o Partido Republicano Português inicia uma revolução tendente a derrubar a monarquia e implementar uma república em Portugal.

Na noite de 3 para 4 de outubro, diversas forças militares sublevam-se, juntando-se a este movimento.

Após inflamados combates, a monarquia é extinta. A proclamação da República é feita das varandas da Câmara Municipal de Lisboa, na manhã do dia 5 de outubro de 1910. Entre as personalidades ali presentes, encontra-se Diogo, meio-irmão de Maria Isabel, que atingira uma destacada posição no partido republicano.

Por essa altura, o rei e seus familiares mais chegados encontram-se na Ericeira, preparando-se para abandonar Portugal. A Marquesa de Marinhais juntara-se a eles havia dois dias.

Quando embarcam para o exílio, Maria Isabel despede-se deles com lágrimas nos olhos. Desde que nascera, sempre convivera com a família real, sentindo que, naquele momento, perdia um pouco da sua vida, ingressando num mundo completamente novo.

Quando regressa ao seu palácio, já não encontra o filho. Numa carta deixada na escrevaninha do seu quarto, Pedro Laurent informa a mãe que iria refugiar-se, durante algum tempo, nas propriedades vinícolas dos Marinhais, nas margens do rio Douro, pois receava que a sua conhecida antipatia pelos republicanos pusesse em perigo a sua vida.

No início de 1911, o filho de Maria Isabel regressa a Lisboa, a fim de se casar com Helena, filha do juiz Aníbal da Figueira.

A 24 de agosto, Manuel de Arriaga torna-se no primeiro presidente eleito da República Portuguesa, sucedendo na chefia do Estado a Teófilo Braga.

Três meses mais tarde, nasce Luís Filipe Figueira Laurent, uma encantadora criança que faz as delícias da avó Maria Isabel.

Em 1912, o Palácio de Belém é designado residência oficial do Presidente da República. Manuel de Arriga passa a morar ali na companhia de sua esposa, D. Lucrécia Augusta e de um neto, pagando uma renda pela ocupação do edifício, para não ser acusado de gozar de privilégios idênticos ao do anterior regime.

Manuel de Arriaga, numa conversa tida com Diogo, faz saber que procura uma perceptora para o seu neto. Sem compromisso, este oferece-se para falar com a sua meia-irmã, referindo que ela é muito culta e já tem bastante experiência nesse cargo.

Maria Isabel aceita ir falar com Manuel de Arriaga, pois já sente saudades de visitar o palácio onde nasceu.

É recebida pelo Presidente da República e sua esposa.

— O seu irmão disse-me que já tem bastante experiência neste cargo – diz Manuel de Arriaga. — Pode indicar-me algumas pessoas para já quem tenha trabalhado?

— Fui perceptora dos reis D. Carlos I e de seu filho D. Manuel II – responde, um pouco a medo, a marquesa.

Manuel de Arriaga não consegue esconder o seu espanto. Um neto seu ser educado por uma senhora que já fora perceptora de dois reis não lhe parece muito conveniente, mas a sua esposa, detentora de convicções pró-monárquicas, recebe-a de braços abertos, desejosa de obter informações privilegiadas sobre os últimos reis de Portugal.

— Não tenho possibilidade de lhe pagar uma verba muito elevada pelo seu trabalho, mas posso arranjar-lhe um bom quarto aqui no palácio – afirma Manuel de Arriaga.

— Não se preocupe. Já usufruo de rendimentos que me permitem uma vida bastante desafogada. É para mim uma honra poder contribuir para a educação do neto de Vossa Excelência. Nasci num quarto da criadagem deste palácio. Prefiro ficar nele. Se for necessário, trarei algum mobiliário de minha casa.

Entre Maria Isabel e D. Lucrécia estabelece-se, ao longo das semanas seguintes, uma profunda amizade. Têm ambas praticamente a mesma idade. A mulher do Presidente é um pouco reservada, mas, perante a perceptora do seu neto, consegue manter um aprazível diálogo, em nada inferior ao das esposas dos monarcas.

A marquesa nem sempre dorme no palácio de Belém, deslocando-se, com frequência, à sua residência, a fim de ver o filho, a nora e o neto, e receber correio da sua irmã de leite e da família real exilada em Londres. Não tinha necessidade de arranjar este emprego, mas apercebe-se que ele contribui para a afastar do isolamento que impusera a si própria após a morte do marido.

Com o avançar da idade, vai-se sentindo mais cansada, mas o seu espírito continua são, trazendo-lhe à memória os momentos mais gratificantes da sua já longa vida.

A 27 de dezembro de 1913, D. Antónia morre em Sigmaringen. Minutos mais tarde, é a vez de Maria Isabel entregar igualmente a alma ao Criador, enquanto dorme serenamente no quarto onde havia nascido.

As duas irmãs de leite voltam a ficar unidas no Paraíso, para toda a eternidade!

ESTE ROMANCE FICA CONCLUÍDO NO PRÓXIMO EPISÓDIO

© Jorge Francisco Martins de Freitas, 12-02-2023.
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