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A IRMÃ DE LEITE DA PRINCESA



romance publicado todos os domingos em episódios sequenciais
autor: Jorge Francisco Martins de Freitas

Episódio 38

Maria Isabel tem conseguido sobreviver às inúmeras epidemias que, desde o seu nascimento, têm grassado em Portugal, levando do seu convívio pessoas por quem nutria uma especial afeição, algumas ainda na flor da juventude. Ao atingir os 61 anos, tem noção que o seu próprio fim estará para breve, pois, na altura, a esperança média de vida rondava os 35 anos.

Sente, por isso, necessidade de passar ao seu filho a administração dos bens da família, para que este possa dar continuidade ao cada vez maior património que os Marinhais detêm. Para o efeito, Pedro Laurent já se encontra a frequentar o Curso Superior de Comércio, integrado no Instituto Industrial e Comercial de Lisboa. Em 1911, este estabelecimento de ensino seria dividido em dois: o Instituto Superior Técnico e o Instituto Superior de Comércio, atual Instituto Superior de Economia e Gestão.

Em julho de 1907, o futuro Marquês de Marinhais termina a sua formação universitária, passando a reunir-se diariamente com Aristides Mendonça, para este o pôr a par dos assuntos correntes da administração do património da família.

Pedro Laurent sugere o recurso a métodos mais modernos de gestão, proposta que é recebida com desagrado pelo idoso chefe do escritório, habituado, há longos anos, a antigos processos administrativos. Perante a insistência do jovem licenciado, tenta desviar a conversa, falando sobre a situação política no país:

— O anterior governo, chefiado por Hintze Ribeiro, do Partido Regenerador, durou apenas cinquenta e nove dias. El-rei fez muito bem em chamar para a presidência do Conselho de Ministros o meu primo João Cabral, do Partido Regenerador Liberal. Desde então, existe uma maior estabilidade governativa no nosso país.

— Sim, sem dúvida – confirma Pedro Laurent. — O problema reside no movimento republicano que, apesar de ter poucos aderentes, se apresenta cada vez mais agressivo.

— Não devemos empolar a importância do Partido Republicano – afirma Aristides Mendonça. — Nas eleições legislativas, nunca ultrapassou os quatro deputados e, entre 1900 e 1905, não conseguiu eleger um único.

— Sim, tem razão – responde o filho de Maria Isabel. — Só voltaram a ter assento no Parlamento nos dois escrutínios realizadas em 1906: em abril, elegeram um deputado e em agosto quatro.

— Nesse mês de agosto, o Partido Regenerador Liberal ganhou as eleições – lembra o chefe do escritório. — Na sessão parlamentar de 20 de novembro, João Franco expulsou do hemiciclo os deputados republicanos Afonso Costa e Alexandre Braga que interpolavam os membros do governo com questões ofensivas, não permitindo o normal funcionamento da câmara.

— Foi muito bem feito, para essa corja aprender a se comportar! – exclama Pedro Laurent. — As discussões parlamentares então havidas foram aproveitadas pela imprensa para vender jornais, provocando agitação social.

— Tem toda a razão – responde o chefe do escritório. — João Franco, quando assumiu o cargo, a 19 de maio de 1906, prometeu aprofundar a democracia, mas era necessário combater os republicanos e sobretudo limitar o excesso de liberdade que gozava a imprensa. D. Carlos fez muito bem em dissolver o Parlamento e adiar a marcação de novas eleições, permitindo ao presidente do Conselho de Ministros governar o país sem ter de auscultar toda a oposição, formada não só pelos republicanos como igualmente pelos monárquicos que se opõem ao governo.

— Graças a esta ditadura, vamos salvar a nossa bem-amada monarquia! – exclama Pedro Laurent.

Maria Isabel, assim como os familiares mais chegados de D. Carlos não comungam uma visão política da situação do país idêntica à expressa por Aristides Pereira e Pedro Laurent; antes pelo contrário, receiam que o apoio do monarca à ditadura de João Franco seja considerado uma intromissão nos assuntos públicos, levando à constituição de revoltas que ponham em perigo a monarquia.

A descoberta, nos últimos dias de janeiro de 1908, de uma conspiração republicana, leva D. Carlos, a Rainha D. Amélia e o Príncipe Real D. Luís Filipe a regressar apressadamente a Lisboa, vindos da sua residência de Vila Viçosa, onde costumam passar frequentes temporadas.

Depois de atravessarem o rio Tejo, chegam, pelas dezassete horas do dia 1 de fevereiro, à Estação do Caminho de Ferro do Sul, situada, na altura, no lado ocidental da Praça do Comércio. A atual estação, no lado oriental da mesma praça, só seria inaugurada a 28 de maio de 1932.

À sua espera, encontra-se João Franco, acompanhado dos infantes D. Manuel e D. Afonso.

A essa hora, pouca gente circula pela praça e apenas três ou quatro polícias estão presentes, efetuando o giro normal. Em contrapartida, observam-se muitas pessoas nas janelas dos ministérios da Guerra, da Fazenda e da Justiça, ocorrência que normalmente não acontece aquando da chegada ou partida da família real para Vila Viçosa.

O rei, depois de estabelecer uma breve conversa com o presidente do Conselho de Ministros, dirige-se para as carruagens que aguardam a família real, subindo para uma delas, na companhia da esposa e dos filhos D. Luís Filipe e D. Manuel. Os camaristas e ajudantes vão à frente, nas restantes carruagens.

O Regicídio

O cortejo segue pelo lado ocidental da praça. Quando chega ao cruzamento com a rua do Arsenal, um homem de estatura média, ostentando uma barba negra, emerge entre as poucas pessoas que ali se encontram, tirando, do interior do seu comprido casaco, uma carabina com a qual desfecha diversos tiros sobre D. Carlos. O rei tomba, de imediato, sobre a rainha, que segue ao seu lado.

Simultaneamente, um homem mais novo acerca-se da carruagem e dispara três tiros sobre o infante D. Luís Filipe. D. Manuel também é atingido no antebraço esquerdo, mas sem gravidade.

A rainha, em pânico, tenta, abnegadamente, proteger com o seu próprio corpo o amado esposo e o príncipe herdeiro, defendendo-os dos regicidas com a única coisa que tinha à mão: um ramo de flores que lhe havia sido ofertado à chegada.

O povo e os poucos polícias ali presentes ocorrem de imediato para junto da carruagem real. Henrique Alves da Silva, um expedicionário de infantaria 12 que ali se encontrava por mero acaso, agarra pelo pescoço o homem das barbas negras e tira-lhe a carabina das mãos, mas esta dispara, atingindo o militar numa perna.

O tenente Francisco Figueira, que passava pelo local, desfere algumas espadeiradas sobre o regicida, mas, durante a luta, acaba por ser também atingido numa perna pelo disparo acidental da arma do homicida.

Ao mesmo tempo, os polícias presentes lançam tiros de revólver sobre os dois criminosos, conseguindo matá-los. Mais tarde, os regicidas seriam identificados: o mais velho era um antigo sargento de cavalaria e professor, chamado Manuel Buíça; e o mais novo era Alfredo Luís da Costa, um empregado de comércio e caixeiro-viajante. Ambos pertenciam a um pequeno grupo de conspiradores ligados à Carbonária portuguesa, na altura associada ao movimento republicano.

Após os primeiros momentos de aflição, a carruagem real segue para o Arsenal da Marinha, situado nas traseiras ocidentais da Praça do Comércio, para serem prestados os primeiros socorros às vítimas deste hediondo e infame atentado.

O príncipe herdeiro já ali chega sem vida. Sua Majestade o Rei, apesar de muito ferido, ainda consegue perguntar se a rainha se encontra bem, morrendo de seguida.

D. Amélia, destroçada, permanece junto dos falecidos, sendo amparada, pouco depois, pela presença D. Maria Pia, vinda, de automóvel, do palácio da Ajuda.

Avisada telefonicamente por D. Manuel, surge, meia-hora mais tarde, a Marquesa de Marinhais. Com o rosto imerso em lágrimas, tenta consolar D. Amélia e o seu filho sobrevivo, sendo por estes encarregada de preparar as exéquias reais e a cerimónia de ascensão ao trono do futuro monarca.

© Jorge Francisco Martins de Freitas, 05-02-2023.
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