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A IRMÃ DE LEITE DA PRINCESA
romance publicado todos os domingos em episódios sequenciais
autor: Jorge Francisco Martins de Freitas
Episódio 34
Maria Isabel olha atónita para Michel Laurent, balbuciando:
— Que está a fazer, desgraçado?
Tenta dar um passo da direção do marido, mas, com a comoção, tudo à sua volta parece rodopiar. Antes de desfalecer, ainda tem tempo de se aperceber que a rececionista abandona, com rapidez, o local.
Quando recupera os sentidos, vê que o marido se debruça sobre ela com lágrimas nos olhos.
— Perdoe, por favor, o meu comportamento! Não merecia que lhe fizesse isto!
Confusa, a marquesa não compreende, de imediato, o que se passa, mas, aos poucos¸ recorda a cruel realidade: o marido por quem tinha tanta consideração é, afinal, igual a muitos outros homens, não a respeitando.
Com a voz embargada por uma profunda dor, Maria Isabel diz-lhe:
— A Josefina aguarda por mim junto à porta da rua. Vá ter com ela e peça-lhe que arranje um carro de praça que nos conduza até à nossa casa. Lá falaremos.
Um dos primeiros telefones
Enquanto o marido desce as escadas, Maria Isabel pega no telefone(1) que fora recentemente instalado no consultório médico e pede à central que estabeleça uma ligação para a sua residência.
É atendida por Afonso, o novo mordomo do palácio, que assumira este cargo após a morte do idoso Bonifácio, ocorrida no ano anterior.
— Dentro de pouco tempo chegarei a casa – comunica a marquesa. — Prepare o quarto dos hóspedes.
— Vou imediatamente tratar do assunto. Vossa senhoria pode ficar descansada!
Michel Laurent regressara, entretanto, ao consultório. Apesar de combalida, Maria Isabel recusa o auxílio do marido para descer a escada, agarrando-se ao corrimão como se de uma tábua de salvação se tratasse. Chegada à rua, Josefina ajuda a patroa a subir para a viatura.
Durante o trajeto, um profundo silêncio paira no interior do veículo, apenas cortado pelo som seco produzido sobre a calçada pelas ferraduras do cavalo que puxa o carro e pelo chiar dos rodados. Maria Isabel evita olhar para o marido que se mantém de cabeça baixa e Josefina permanece recatadamente calada, olhando, através das vidraças, para as luzes que começam a iluminar o entardecer da cidade.
Após longos minutos que parecem ao médico uma eternidade, avistam, no fim de uma escura e íngreme calçada, o resplandecente palácio dos Marinhais iluminado por uma apreciável quantidade de lâmpadas elétricas.
Após ficarem a sós, a marquesa dirige-se ao marido:
— O que me fez não tem perdão. Sempre o acarinhei e nunca me esquivei a qualquer contacto mais íntimo consigo. Infelizmente, muitos homens têm amantes e as suas esposas preferem calar-se, pois dependem financeiramente deles. No entanto, sabe muito bem que comigo isso não sucede. Em qualquer momento, posso ordenar que se retire de minha casa.
— Mais uma vez lhe peço que me perdoe – responde o médico, soluçando como uma criança. — Foi um grave devaneio da minha parte. Acredite que nunca mais sucederá!
— Se puser a mão na consciência, certamente tomará a decisão mais acertada: abandonar a minha casa – afirma Maria Isabel com voz severa. — No entanto, não exijo que o faça já, em atenção ao nosso filho e a Sua Majestade D. Amélia, através da qual o conheci. Porém, não conte mais comigo para qualquer intimidade. Já mandei preparar um quarto para si, até resolver o que pretende fazer da sua vida.
Vários meses se passam, durante os quais Michel Laurent continua a pernoitar sozinho no quarto, apesar de constantemente continuar a pedir à esposa perdão pelo seu ato. Porém, durante as reuniões sociais, surgem sempre na companhia um do outro, aparentando existir uma completa harmonia entre o casal. A marquesa passa a maioria dos dias no Palácio da Ajuda, cuidando da educação do infante D. Manuel e do seu filho Pedro Laurent, pernoitando nas instalações que ali lhe foram atribuídas.
Elevador da Graça
No verão de 1893, a carruagem dos Marinhais estaciona na Rua da Palma, junto à Praça Martim Moniz. Do seu interior, saem Ana Francisca e o marido, levando pela mão o filho de Maria Isabel, que atingira, entretanto, os 5 anos de idade.
Para subirem até à Graça, situada 75 metros mais acima, utilizam um elevador projetado por Raoul Mesnier du Ponsard, inaugurado a 27 de fevereiro desse ano.
Este meio de transporte, composto por quatro carruagens, funcionava através de um sistema de cabo sem fio sob a via, durante um trajeto de 750 metros.
Desativado em 1909, parte do seu percurso foi integrado na linha de elétricos 12E da Carris.
Após terem saído do elevador, dirigem-se para a Igreja de Nossa Senhora da Graça, em frente à qual se situa um miradouro panorâmico sobre a cidade.
Enquanto Ana Francisca reza na Igreja, o marido fica a vigiar Pedro Laurent, que se entretém brincando com outras crianças. A certa altura, este afasta-se um pouco mais, obrigando Alfredo a dar uma corrida na sua direção. A meio do caminho, sente-se mal, caindo inanimado no chão.
Assim que sai da Igreja, Ana Francisca não vê o marido, mas um grande aglomerado de pessoas chama a sua atenção. No meio delas, encontra o neto, chorando abraçado a Alfredo. Aflita, tenta socorrer o marido, mas já nada havia a fazer, sendo o cadáver conduzido ao Hospital de São José.
Teatro Dona Amélia, atual Teatro São Luís
A 22 de maio de 1894, o Chiado está em festa. O Teatro Dona Amélia, atual São Luiz, completamente lotado, está prestes a ser inaugurado.
A presença de Maria Isabel sentada junto de D. Carlos I e D. Amélia não passa despercebida à maioria dos nobres presentes na sala, muitos deles não conseguindo esconder a inveja que têm pela atenção que os monarcas lhe dispensam.
Michel Laurent, acompanhado da sogra e do filho, senta-se na primeira fila da plateia. Apesar de já terem decorrido dois anos sobre a traição por este praticada, o casal continua a fazer uma vida separada, não obstante marcarem presença nos mesmos eventos sociais.
Em breve se faz silêncio, dando início à opereta A filha do Tambor-mor, de Jacques Offenbach.
O cinema chega a Portugal
A 28 de dezembro de 1896, a Marquesa de Marinhais reúne, no seu palácio, inúmeros convidados, a quem dirige o seguinte discurso:
«Agradeço, em primeiro lugar, a honrosa presença de Sua Majestade o Rei D. Carlos I, acompanhado de sua augusta esposa, a Rainha D. Amélia e de Suas Altezas Reais os Príncipes D. Luís Filipe e D. Manuel.
Em segundo lugar, congratulo-me com a vinda a este evento de Sua Eminência o senhor Cardeal-patriarca e ilustres nobres por mim convidados.
Por último, saúdo os membros do governo aqui presentes e o público em geral.
Como já é do vosso conhecimento, faz hoje precisamente um ano que os irmãos Auguste e Louis Lumière apresentaram em Ciotat, no sudeste de França, breves momentos de “imagens em movimento” a que atribuíram o nome de La Sortie de l'usine Lumière à Lyon (A Saída da fábrica Lumière, em Lyon).
Mais do que um poderoso meio de entretenimento, estas “imagens em movimento” constituirão, na minha opinião, um relevante meio de transmitir às gerações futuras momentos fulcrais da história da Humanidade.
Tenho a honra de vos apresentar Sua Excelência o senhor Aurélio da Paz dos Reis. Munido de uma câmara idêntica à dos irmãos Lumiére, captou as primeiras “imagens em movimento” do nosso País.
A primeira série de imagens, com duração de 55 segundos, intitula-se Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança. Apresenta um grande número de trabalhadores da cidade do Porto, na sua maioria mulheres jovens, a sair pela porta da frente do seu local de trabalho, à hora do almoço.
Seguir-se-ão mais quatro, com curta duração: A Dança Serpentina, Caricaturas por Pina Vaz, Feira de Gado na Corujeira e No Jardim.»
Após apresentação destas cinco séries de “imagens em movimento”, projetadas na parede do fundo da sala de reuniões do palácio, todos os presentes, entusiasmados, solicitam visionar mais vezes esta novidade tecnológica.
E assim teve lugar uma das primeiras sessões públicas de cinema em Portugal!
© Jorge Francisco Martins de Freitas, 08-01-2023.
Proibida a reprodução sem autorização prévia do autor.
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Assista à projeção de 3 dos 5 filmes apresentados no Palácio dos Marinhais
Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança
Feira de Gado na Corujeira
No Jardim
Notas
(1) A primeira rede telefónica pública de Lisboa foi inaugurada a 26 de abril de 1882.
OUTRA OBRA
DESTE AUTOR
disponível nas livrarias

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