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A IRMÃ DE LEITE DA PRINCESA
romance publicado todos os domingos em episódios sequenciais
autor: Jorge Francisco Martins de Freitas
Episódio 32
Diogo, em conjunto com Elias Garcia, Latino Coelho e Manuel de Arriaga, tornara-se uma das principais figuras do Partido Republicano Português.
Maria Isabel sempre sentiu pelo irmão um imenso carinho, evitando discutir com ele os ideais políticos que este pugnava, influenciado, desde tenra idade, por seu pai Alfredo, um antimonárquico confesso, mas nem sempre essa postura era possível.
Devido aos seus múltiplos afazeres, só durante os almoços de domingo todos os residentes do palácio dos Marinhais tinham disponibilidade para se reunirem à mesa.
A 12 de janeiro de 1890, a conversa incide sobre o ultimato inglês a Portugal, entregue no dia anterior, sob a forma de um “memorando”.
— Este ultimato é uma vergonha! – afirma Diogo, elevando a voz. — Como é possível que o nosso velho aliado nos faça tal ameaça?
— O que diz esse ultimato? – pergunta Ana Francisca, com curiosidade.
— Os ingleses exigem que as nossas tropas abandonem os territórios entre Angola e Moçambique, que são nossos por direito histórico!
— Infelizmente, a Conferência de Berlim sobre a partilha colonial de África, que decorreu entre novembro de 1884 e fevereiro de 1885, fez tábua rasa desse direito histórico, declarando a necessidade de uma ocupação efetiva desses territórios – afirma Maria Isabel.
— Sim, é verdade! – confirma Diogo. — E Portugal fê-lo! Enviou para a região tropas comandadas por Serpa Pinto.
— Então, se Portugal está a ocupar efetivamente esse território, nos termos da Conferência de Berlim, por que razão os ingleses querem que saiamos de lá? – questiona Ana Francisca.
— Eles pretendem estabelecer um corredor colonial entre o Sudão e a cidade do Cabo, pelo interior de África e a nossa pretensão de ligar Angola a Moçambique, colide com os seus interesses – responde Diogo.
Mapa cor-de-rosa
— A Sociedade de Geografia de Lisboa até já apresentou, em 1886, um mapa com os territórios pretendidos por Portugal impressos a cor-de-rosa! – afirma Alfredo.
— Ah, sim! É o célebre mapa cor-de-rosa de que tanto se fala – confirma Madalena.
— E o que acontecerá se Portugal não sair desses territórios? – pergunta Michel Laurent.
— Provavelmente, a Inglaterra cortará relações diplomáticas com Portugal e poderá, inclusivamente, vir a declarar-nos guerra e nós não temos capacidade económica para encetar uma luta – responde Maria Isabel. — Já fomos a maior potência marítima, mas agora estamos reduzidos a meia-dúzia de obsoletos barcos de guerra.
— Se não temos verbas para nos defendermos a culpa é do governo que anda a emprestar dinheiro à família Real para esta fazer uma vida faustosa! – afirma Diogo.
— Não é bem assim! – responde calmamente Maria Isabel. — Desde Fontes Pereira de Melo que os inúmeros investimentos em infraestruturas têm vindo a depauperar as reservas monetárias do país e, quanto à verba atribuída à Família Real para despesas de representação, esta não é aumentada desde o reinado de D. João VI. Para colmatar os gastos cada vez mais elevados, os sucessivos ministros da Fazenda vêm-se obrigados a conceder-lhes adiantamentos e abonos em dinheiro.
— Todas essas verbas estão à margem da lei e das Cortes! – interrompe Diogo, com brusquidão.
— Parte dos empréstimos que lhes são atribuídos destinam-se ao pagamento de despesas relativas à vinda a Portugal de chefes de Estado estrangeiros em visita oficial – declara Maria Isabel com voz suave, para atenuar a discussão.
— A maioria desses chefes de Estado estrangeiros são familiares do rei! Se existisse em Portugal uma República isso não sucederia! – responde Diogo, cada vez mais irritado.
— Se a Família Real recebesse as verbas referentes à utilização, por parte do governo, de edifícios pertencentes à Coroa, esses empréstimos seriam desnecessários! – remata Maria Isabel, já cansada com tamanha disputa.
Após esta acalorada discussão, Diogo decide anunciar que pretende abandonar brevemente o Palácio dos Marinhais, passando a residir, com a mulher e o seu recém-nascido filho, numa casa própria, no Bairro Alto, decisão que muito abala a sua irmã.
A Portuguesa
Em resposta ao ultimato britânico surge, em 1890, A Portuguesa, uma canção de cariz patriótico, com texto de Henrique Lopes de Mendonça e música de Alfredo Keil. Após a implantação da República, esta composição tornar-se-ia o Hino Nacional de Portugal.
Palácio das Cortes
(atual Assembleia da República)
A 30 de março de 1890, realizam-se eleições legislativas em Portugal Continental e Ilhas Adjacentes, estando em disputa 169 assentos. Os regeneradores vencem, com 115 deputados, seguidos dos Progressistas com 33 e dos Republicanos com 3.
Num universo de 4 660 095 habitantes, apenas 951 490 tiveram direito a expressar a sua vontade através do voto.
Durante este escrutínio, ocorrem, em Lisboa, graves tumultos que provocam dez mortos e cerca de quarenta feridos.
Inauguração do Coliseu dos Recreios, em Lisboa
A 14 de agosto de 1890, abre ao público o Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Construído com uma inovadora arquitetura em ferro, ostenta no topo uma cúpula do mesmo material com 25 metros de raio, vinda da Alemanha.
Maria Isabel está presente nesta inauguração, levando consigo a mãe, o filho, o sobrinho e trinta crianças da sua escola.
Sarau literário dedicado a Camilo Castelo Branco
Com muitos problemas de saúde, incluindo uma iminente perda da visão, o escritor português Camilo Castelo Branco suicida-se a 1 de junho de 1890, disparando um tiro na têmpora.
Na noite do sábado seguinte, realiza-se um sarau literário no Palácio dos Marinhais, integralmente dedicado a este escritor.
Após um minuto de silêncio em sua homenagem, Maria Isabel usa da palavra, tecendo a seguinte dissertação:
«Todos lamentamos a perda deste escritor, cuja vida se assemelha a muitas das suas novelas ficcionais.
A maioria de nós leu, com muito gosto, alguns dos mais de duzentos e sessenta livros que escreveu, entre os quais destaco Amor de Perdição, Eusébio Macário e A Brasileira de Prazins.
Camilo nasceu em Lisboa, a 16 de março de 1825.
Era filho de Manuel Joaquim Botelho Castelo Branco, proveniente de uma família aristocrata e de Jacinta Rosa do Espírito Santo Ferreira.
É registado como filho de «mãe incógnita», em virtude do seu pai nunca ter assumido a relação através do casamento, tendo-o simplesmente «perfilhado».
Enquanto criança, a sua educação fica a cargo de dois padres de província que nem sempre o acompanham convenientemente na evolução dos seus estudos.
Na adolescência, lê os clássicos portugueses e latinos e temas literários eclesiásticos, mantendo-se sempre em contacto com a natureza transmontana.
Aos 16 anos de idade, casa-se com Joaquina Pereira de França, uma filha de lavradores transmontanos. Este casamento não duraria muito tempo, não só pela sua precocidade como igualmente pelo seu espírito irrequieto que o leva a apaixonar-se com muita facilidade. Patrícia Emília do Carmo de Barros foi uma das outras mulheres com quem viveu, tendo-a abandonado passado algum tempo.
Propenso a levar uma vida boémia, envolve-se constantemente em desavenças pelas quais é agredido com frequência.
Tenta cursar Medicina na cidade do Porto, mas não conclui a sua formatura.
Apaixona-se perdidamente (usando um termo muito caro a Camilo) por Ana Augusta Vieira Plácido. Quando esta se casa, em 1850, fica tão desgostoso que ingressa num seminário, mas acaba por o abandonar em 1852.
Camilo seduz Ana Plácido, rapta-a e vive com ela até ser apanhado pelas autoridades.
São ambos conduzidos à Cadeia da Relação, no Porto, onde Camilo faz amizade com o salteador Zé do Telhado, o célebre ladrão que roubava os ricos para distribuir pelos pobres.
O eco deste seu caso amoroso espalha-se rapidamente pela opinião pública que o vê como se de um romance romântico se tratasse.
Absolvido do crime de adultério, Camilo passa a viver com Ana Plácido e, mais tarde, quando o marido desta morre, vão ambos morar para a confortável casa do falecido.
A esta emocionante e atribulada vida foi buscar os temas para muitas das suas novelas «confessionais», tendo sido o primeiro escritor de língua portuguesa a viver exclusivamente do produto da venda dos seus livros.»
Após estas palavras proferidas pela Marquesa de Marinhais, alguns convidados leem em voz alta passagens das obras mais significativas de Camilo.
Eram já duas da manhã quando este sarau terminou, mas muitos dos participantes ainda ficaram nos jardins do palácio durante mais algum tempo, pronunciando-se sobre algumas das personagens dos livros deste autor.
Estação do Rossio, em Lisboa
A 18 de maio de 1890, é inaugurada a estação ferroviária do Rossio, mas a fachada principal só ficará pronta em setembro. Para além de términus das linhas de Sintra e do Oeste, a sua centralidade leva a que, a partir do ano seguinte, receba, igualmente, comboios-correio oriundos do Norte e Leste. Em junho de 1894, a estação recebe iluminação elétrica.
Elevador da Estrela, em Lisboa
A 14 de agosto de 1890, entra em funcionamento, em Lisboa, o Elevador entre a Estrela e o Largo de Camões.
Este meio de transporte integraria, mais tarde, a rede de elétricos da Carris.
III Recenseamento Geral da População
A 1 de dezembro d3e 1890, tem lugar o III Recenseamento Geral da População. Segundo este censo, em Portugal Continental, Açores e Madeira existem 5 049 729 habitantes, (2 430 339 homens e 2 619 390 mulheres). Destes, apenas 1 048 802 sabem ler.
A 24 de dezembro de 1890, ocorre, pela primeira vez, a Grande Ceia de Natal, proporcionada pelos Marinhais a famílias carenciadas de Lisboa. Um vasto pavilhão forrado a pano encontra-se erguido nos jardins do palácio da marquesa, abundantemente iluminado por candeeiros a gás. No próximo ano, com a fundação da empresa Companhias Reunidas de Gás e Eletricidade, este evento já contará com lâmpadas elétricas.
No dia anterior, todos os convidados receberam, nas suas humildes casas, roupas e sapatos para se apresentarem condignamente nesta festa natalícia.
Os Marinhais ocupam uma mesa no centro do pavilhão. Ao seu lado, encontra-se montado um presépio rodeado por inúmeras caixas com brinquedos para serem distribuídos pelas crianças.
Emocionada por poder proporcionar a tanta gente esta consoada, Maria Isabel ergue-se da mesa para dirigir a todos algumas palavas, mas a comoção é tanta que apenas consegue dizer:
— Um Feliz Natal a todos!
© Jorge Francisco Martins de Freitas, 25-12-2022.
Proibida a reprodução sem autorização prévia do autor.
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