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A IRMÃ DE LEITE DA PRINCESA



romance publicado todos os domingos em episódios sequenciais
autor: Jorge Francisco Martins de Freitas

Episódio 19

A 17 de fevereiro de 1863, Maria Isabel atinge finalmente dezoito anos, tomando posse efetiva da fortuna que o avô lhe tinha deixado.

No dia seguinte, uma quarta-feira, a Marquesa de Marinhais convida a mãe e o padrasto para um piquenique no Campo Grande.

Saem da mansão um pouco antes do sol nascer, pois terão de percorrer um longo e sinuoso caminho, através de azinhagas e estradas poeirentas.

Por volta das nove da manhã, a carruagem onde seguem atinge São Sebastião da Pedreira, prosseguindo pela estrada do Rego, que segue inicialmente paralela à da Palhavã. Passam junto ao Recolhimento de Nossa Senhora do Rosário, fundado em 1770 por Margarida das Mercês, para acolher mulheres que pretendessem abandonar a prostituição. Neste local, situa-se, hoje, o Hospital Curry Cabral.

Atingem finalmente o Campo Pequeno, assim chamado em oposição ao Campo Grande, seu destino final. É uma zona plana, muito espaçosa, ladeada, a norte, pela soberba casa e quinta do senhor Francisco Isidoro Viana e, a sul, pela extensa propriedade dos condes de Galveias, constituída por um imponente palácio do século XVIII, rodeado por uma quinta com belos jardins, árvores exóticas e bosques, constituindo uma das melhores residências dos subúrbios da capital.

— Este palácio, apesar de ser a residência oficial dos seus proprietários, encontra-se atualmente um pouco degradado – afirma Alfredo, dirigindo-se à mulher e à enteada, que segura Diogo no regaço.

— Mas, apesar de tudo, é muito bonito! – retorque a Marquesa de Marinhais.

— O Campo Pequeno é utilizado para exercícios militares da Guarnição de Lisboa, mas também têm ocorrido aqui solenes festejos aquando de aniversários e casamentos reais – declara Alfredo. — Prevejo que, no futuro, com alguns melhoramentos, se poderá tornar um lindo local para passear!

A carruagem dos Marinhais aproxima-se do lado oriental do Campo Pequeno, orlado de casas, entrando na estrada que vai do Arco Cego até ao Lumiar.

Minutos mais tarde, chegam à entrada do Campo Grande, outrora chamado Campo de Alvalade.

Campo Grande

Com uma extensão de quase um quilómetro e meio, encontra-se totalmente cercado por um muro baixo, possuindo seis grandes portas de ferro: duas em cada um dos extremos e outras duas laterais.

Todo este conjunto é envolvido pela estrada pública, ladeada de palácios e casas de campo. Entre todos os edifícios circundantes, dois ressaltam pela sua imponência: o Asilo de D. Pedro V, mandado construir, em homenagem àquele rei, pelo senhor Viana Pedra e outros benfeitores locais para albergar crianças desprotegidas; e o palácio do senhor Manuel Joaquim Pimenta, mandado edificar por D. João V, no século XVIII, para albergar uma sua amante.

Por ordem de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro do Reino no tempo de D. Maria I, foram aqui plantadas inúmeras árvores, recebendo, posteriormente, atraentes jardins e lagos. Ruas com largura suficiente para a passagem de carruagens e cavaleiros permitem aos Marinhais o acesso ao interior do Campo Grande.

A manhã apresenta-se solarenga, apesar de se estar em pleno inverno. Uma brisa discreta sopra do Norte, abanando suavemente os troncos desprovidos de folhagem.

Maria Isabel e a sua família descem da viatura e dirigem-se para um pequeno lago onde meia dúzia de patos grasnam ruidosamente. Colocam uma toalha sobre a ainda humedecida relva, dispondo sobre ela recipientes com comida.

A curta distância, cinco funcionários da Câmara Municipal de Lisboa cuidam de um viveiro. Dali sairá o arvoredo que irá ornamentar passeios públicos, praças e estradas.

— Nos primeiros meses de 1578, o nosso rei D. Sebastião vinha até aqui, todos os domingos, passar revista às tropas que o haveriam de acompanhar ao norte de África – diz Alfredo.

— Infelizmente, D. Sebastião acabaria por desaparecer na batalha de Alcácer Quibir, levando à perda da nossa Independência – afirma, pesarosa, Maria Isabel.

— Neste local, ingleses residentes em Portugal introduziram, nos primeiros anos deste século, corridas de cavalos que atraíam milhares de lisboetas – reporta Alfredo. — Mais tarde, outras corridas foram organizadas pelos portugueses, mas nunca chegaram a obter o mesmo êxito. Atualmente, no mês de outubro, realiza-se aqui uma grande feira, que dura quinze dias.

— Haveremos de voltar cá, por altura dessa feira, caso não continues a pensar deixar-nos para ires ter com a tua irmã de leite – afirma Ana Francisca, dirigindo-se à sua filha, com um semblante denotando uma profunda tristeza.

— Ainda não resolvi. Gosto muito dela, mas custa-me abandonar a minha família, principalmente o meu irmão Diogo, por quem sinto grande ternura. Vou permanecer em Lisboa mais algum tempo. Depois, pensarei melhor!

O sol em breve desapareceria e era necessário regressar a Lisboa, antes que a noite os envolvesse.

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No mês seguinte, a Marquesa de Marinhais, acompanhada da mãe e do advogado, visita, pela primeira vez, as suas vinhas no Douro, tendo voltado a encontrar-se com Manuel Martins, o fiel feitor daquelas propriedades, que já a havia visitado em Lisboa, no ano anterior. No regresso, permanece alguns dias na cidade de Lamego, local onde ainda residem familiares da sua avó paterna.

Apesar de poder contar com o apoio dado pelo advogado do seu avô, cada vez se torna mais difícil para Maria Isabel abandonar a gestão dos negócios da família, pelo que vai protelando a ida para junto de D. Antónia.

Em julho, decide aproveitar um dos edifícios que possui em Lisboa para aí instalar uma escola para raparigas desfavorecidas. Contrata professores e, ela própria, ministra algumas das aulas.

Batizado de D. Carlos I

A 28 de setembro desse ano, nasce o infante D. Carlos, primeiro filho de D. Luís I e de sua esposa D. Maria Pia.

O monarca pede a Maria Isabel para ser tutora do futuro rei, tarefa que esta considera ser uma honra aceitar.

Esta designação como futura educadora de D. Carlos e todas as inúmeras tarefas que sobre si recaem com a administração das vastas propriedades que detém, acabam por impossibilitar, em definitivo, a sua ida para junto de D. Antónia.

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A 1 de janeiro de 1864, realiza-se o I Recenseamento Geral da População de Portugal, abarcando apenas o território do continente europeu e os arquipélagos dos Açores e da Madeira, deixando de fora as colónias. Foi o primeiro censo nacional a reger-se pelas orientações internacionais prescritas no Congresso Internacional de Estatística de Bruxelas, realizado em 1853. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, de um total de 4 188 410 habitantes, verificou-se que 2 005 540 eram homens e 2 182 870 mulheres.

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Sete semanas mais tarde, Maria Isabel comemora os dezanove anos de idade realizando um baile na sua mansão, entretanto ampliada com um espaçoso salão para a realização de festas.

Inúmeros elementos da nobreza vão chegando à residência dos Marinhais em majestosas carruagens, sendo recebidos por empregados impecavelmente trajados. D. Luís I marca presença neste evento, acompanhado da sua esposa, que ostenta um vistoso vestido esverdeado.

Diversos jovens, filhos de titulares da alta nobreza, perfilam-se no Salão de Baile, ansiosos por dançar com a jovem marquesa que alia à sua imensa fortuna uma deslumbrante beleza.

Maria Isabel a todos concede uma dança, espalhando o seu encanto, sem se comprometer com nenhum deles. Durante quanto tempo conseguirá manter esta postura de distanciamento em relação ao casamento? As palavras do seu advogado continuam bem presentes na sua memória: ao contrair matrimónio, todos os bens que possui passarão a ser pertença do marido.

Dias depois, Maria Isabel recebe uma carta de D. Antónia, oriunda do Castelo de Benrath, perto de Düsseldorf, comunicando o nascimento de Guilherme, o seu primeiro filho, ocorrido a 7 de março de 1864. Esta criança tornar-se-ia o futuro Príncipe de Hohenzollern-Sigmaringen, de 1905 até a sua morte, ocorrida a 22 de outubro de 1927.

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Entre abril e maio de 1864, os estudantes de Coimbra realizam uma greve académica motivada pelo facto de terem solicitado, sem êxito, a dispensa dos exames finais de ano letivo e do pagamento da respetiva propina, com o pretexto de celebrar o nascimento do infante D. Carlos. O primeiro-ministro Duque de Loulé não aceita esta exigência, levando os estudantes a queimar, junto à Porta Férrea, uma sua efígie em palha. Para acabar com esta revolta, o governo envia tropas para Coimbra. Este incidente ficará conhecido por Rolinada, nome baseado em Rolim, um dos apelidos do Duque de Loulé.

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A 11 de setembro de 1864, realizam-se eleições legislativas em Portugal. Apenas dois partidos elegem deputados: o Partido Histórico, liderado por Nuno José Severo de Mendonça Rolim de Moura Barreto, Duque de Loulé, de ideologia liberal, obtém 145 assentos e o Partido Regenerador, chefiado por Fontes Pereira de Melo, de ideologia conservadora, obtém 32. Apenas homens que sabiam ler e escrever puderam inscrever-se nos cadernos eleitorais, o que revolta Maria Isabel, por considerar que as mulheres estavam a ser discriminadas. Dos 350 145 inscritos, só 68,1% votaram.

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A 29 de setembro de 1864, é firmado, entre Portugal e Espanha, o Tratado de Lisboa, fixando as fronteiras entre os dois países. Os marcos entre o Rio Guadiana e a foz do Odiana ficam por assinalar, em virtude de Portugal não reconhecer a ocupação espanhola do município de Olivença.


© Jorge Francisco Martins de Freitas, 25-09-2022.
Proibida a reprodução sem autorização prévia do autor.

Créditos

A imagem do Campo Grande foi retirada da revista Arquivo Pitoresco, Volume VI, nº 35, de 1863.

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