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A IRMÃ DE LEITE DA PRINCESA



romance publicado todos os domingos em episódios sequenciais
autor: Jorge Francisco Martins de Freitas

Episódio 14

Um ar fresco suaviza o calor que tem atingido a cidade de Lisboa nos últimos dias.

D. Estefânia aproveita a temperatura mais amena para dar um longo passeio entre o arvoredo da Tapada das Necessidades, acompanhada de D. Antónia e de Maria Isabel.

— Tem tido notícias do seu irmão Leopoldo? – pergunta D. Antónia à cunhada.

— Sim, tenho! Recebi esta manhã uma carta dele. Encontra-se bem!

— E do Frederico? Sabe alguma coisa? – questiona, com alguma hesitação, a irmã de leite da princesa.

— A única coisa que sei é que ele esteve recentemente em Londres, fazendo parte de uma delegação enviada por Frederico Guilherme, Rei da Prússia, à Rainha Vitória.

No dia em que Leopoldo e Frederico deixaram Lisboa para regressar a Düsseldorf, prometeram a D. Antónia e a Maria Isabel que haveriam de lhes escrever, mas o tempo foi passando e nunca chegaram a receber qualquer correspondência dos dois irmãos de leite, o que bastante as desanimou, pois tinham ficado encantadas com a sua atraente presença e muito agradadas com a atenção que estes lhes haviam dispensado.


Sala Azul, no Palácio das Necessidades

Dias mais tarde, quando Maria Isabel se encontra sentada num dos cadeirões da Sala Azul, lendo o diálogo filosófico O Sobrinho de Rameau, de Diderot, é interrompida por um criado:

— Menina Maria Isabel, o senhor Marquês de Marinhais encontra-se na Sala do Porteiro da Cana e deseja falar-lhe.

— Traga-o à minha presença, por favor!

Longos minutos mais tarde, o general Luís Xavier Mascarenhas de Noronha, apesar de se apresentar trajado com o seu sumptuoso uniforme militar, surge curvado, sustentado por uma desgastada bengala, com o semblante denotando um profundo sofrimento.

Maria Isabel levanta-se e ajuda-o a sentar-se ao seu lado.

— Menina Maria Isabel, sei que o meu fim está próximo e, antes de morrer, desejo transmitir-lhe um assunto que muito tem pesado sobre a minha consciência.

— Que assunto pretende vossa senhoria comunicar-me? – pergunta recatadamente a irmã de leite da princesa.

— O meu filho Pedro faleceu há alguns anos, e eu fiquei sozinho, sem ter mais nenhum familiar que me fizesse companhia!

— Os meus sentimentos! – exclama Maria Isabel, condoída pela infelicidade que recaíra sobre Luís Xavier.

— O médico que me assiste, já me avisou que pouco tempo de vida me resta.

— Talvez ele esteja enganado e vossa senhoria ainda possa alcançar mais anos de vida!

— Não, não creio. Os meus dias estão contados e eu quero dizer-lhe que o meu filho gostava muito de uma criada deste palácio e pediu-me, várias vezes, para se casar com ela, mas eu não o permiti! Tiveram ambos uma filha e eu repudiei-a! – declara o velho marquês, com as lágrimas escorrendo pelo rosto.

Uma profunda comoção atravessa o peito de Maria Isabel. A história que este está a contar é-lhe profundamente familiar. Não precisou que Luís Xavier dissesse mais nada.

— Vossa senhoria é o meu avô! – exclama, com os olhos igualmente inundados em lágrimas.

— Sou, sim, Maria Isabel!

Profundamente emocionados, avô e neta abraçam-se com afeto.

— Já tratei de a reconhecer oficialmente como minha neta. Quando eu morrer, o doutor Fonseca, o meu advogado, tratará de todos os meus negócios até que a Maria Isabel atinja a maioridade. Será a futura Marquesa de Marinhais!

— Meu avozinho! – exclama Maria Isabel com a voz embargada pela comoção. — Vou tratar de si e é possível que se salve. Vou já acompanhá-lo a casa. Tem algum transporte?

— Tenho, sim! O meu cocheiro aguarda-me à entrada do palácio – responde Luís Xavier.

A neta do Marquês de Marinhais procura D. Antónia e põe-na a par da situação.

— Fico muito triste por se ir embora, mas compreendo os motivos do seu afastamento. Espero que me venha visitar com frequência!

— Virei, sim! O médico dele diz que lhe sobram poucos dias de vida. Por isso, é natural que, em breve, volte para o pé de si! Agora vou acompanhar o meu avô e, posteriormente, virei despedir-me dos restantes elementos da família real.

Maria Isabel ampara o avô até à saída do palácio. O cocheiro, assim que os vê, vem ajudar o senhor general Luís Xavier a subir para o coche que o havia transportado até ali: uma bela viatura profusamente revestida com talha dourada, bastante idêntica às da família real, puxada por dois elegantes cavalos brancos, cuidadosamente tratados.

— Este é o Bernardo! Era meu impedido nos campos de batalha. Já há alguns anos que trabalha diretamente para mim, como cocheiro e jardineiro.

— Tenho muito prazer em conhecer o senhor Bernardo! – exclama Maria Isabel.

— Eu também tenho muito gosto em conhecer vossa senhoria! – responde o cocheiro, encantado com a forma bastante educada como esta se dirige a ele.

Minutos mais tarde, chegam ao portão do muro que envolve os jardins e a residência apalaçada do Marquês de Marinhais. À entrada, estão perfilados diversos empregados que se curvam perante a nova senhora da casa, assim que o velho general os apresenta:

— Este é Bonifácio, o mordomo. Já trabalhava para o seu bisavô. E estas duas são a Elisa e a Fernanda. Tratam dos quartos e servem as refeições. E esta aqui é a Margarida, a cozinheira.

— Tenho muito gosto em conhecê-los – diz Maria Isabel.

Feitas as apresentações, o Marquês de Marinhais dirige-se ao seu mordomo:

— Vá mostrar toda a casa à minha neta e indique-lhe o seu futuro quarto, o mesmo onde dormia o meu filho!

Maria Isabel fica impressionada com o interior da casa apalaçada do seu avô. Embora bastante menor em relação ao Palácio das Necessidades, possui um luxuoso interior em nada inferior à ostentação da residência da família real.

Já muito debilitado pela terrível doença que o aflige, o Marquês de Marinhais apenas sobrevive mais dez dias, durante os quais Maria Isabel nunca se afasta dele.

Após o funeral do avô, pede à mãe e ao padrasto que passem a viver no palacete que havia herdado, o que traz imensa alegria ao idoso mordomo Bonifácio, que sempre simpatizara com Ana Francisca.

De regresso ao seu quarto no Palácio das Necessidades, é recebida, com júbilo, por D. Antónia que, com um ar simultaneamente solene e divertido, lhe diz:

— Muito bem-vinda ao meu palácio, senhora Marquesa de Marinhais!

Maria Isabel ri-se e ambas se abraçam demoradamente.

Ser marquesa pouco lhe importava. Afinal, ela detinha, na prática, um maior estatuto: não era propriamente uma princesa, mas era tratada como tal!

Saber quem eram os seus ascendentes paternos e ser por eles amada, era, para Maria Isabel, mais importante que todas as riquezas que tinha herdado.


Chegada do cortejo fúnebre de D. Estefânia ao Mosteiro de São Vicente de Fora

A 17 de julho de 1859, pouco tempo após o seu casamento, D. Estefânia morre, aos vinte e dois anos de idade, vítima de difteria.

Segundo reza a tradição, terá dito, em português, antes de falecer, a seguinte frase: Consolem o meu Pedro!

O rei fica inconsolável, pois amava profundamente a esposa. Numa carta enviada, quatro dias mais tarde, ao Duque da Terceira, Presidente do Conselho de Ministros, escreve:

O troar dos canhões de cinco e cinco minutos e o repicar dos sinos de todas as igrejas de Lisboa acompanha o cortejo fúnebre de D. Estefânia até ao Panteão dos Bragança, no Mosteiro de São Vicente de Fora, onde, até hoje, o seu corpo repousa.

Enquanto foi viva, D. Estefânia, ao visitar o Hospital de S. José, ficou impressionada com a promiscuidade com que eram tratados, na mesma enfermaria, crianças e adultos. Imediatamente, ofereceu o seu dote de casamento para que aí fosse criada uma enfermaria exclusivamente infantil e manifestou o desejo de construir, de raiz, um hospital para crianças pobres e enfermas.

Essa sua vontade foi escrupulosamente cumprida por D. Pedro V que deu início à edificação dum estabelecimento de saúde infantil na parte norte da quinta do Paço Real da Bemposta, nos arredores de Lisboa, mas só a 17 de julho de 1877, já no reinado de D. Luís, ficou concluído.

Denominado inicialmente Hospital da Bemposta, devido ao local onde fora erigido, o povo da cidade encarregou-se de prestar uma última homenagem à sua amada rainha, apelidando-o, definitivamente, Hospital de Dona Estefânia.

O desenvolvimento urbanístico de Lisboa acabou por englobar este estabelecimento hospitalar no perímetro da cidade, sendo hoje atribuído o nome de Estefânia a toda a zona envolvente.

* * * * * * * *

Ligações aconselhadas

Aconselhamos que leia o artigo publicado n’A Illustração Luso-Brazileira de 23 de julho de 1859, não apenas pela descrição pormenorizada que faz sobre o funeral de D. Estefânia como igualmente pelo pendor eminentemente literário com que esta infeliz ocorrência é descrita.

Para aceder online a este periódico do século XIX, clique na imagem a seguir inserida:

Créditos

A imagem da Sala Azul, no Palácio das Necessidades, foi retirada do site A Casa Senhorial.

A imagem de chegada do cortejo fúnebre de D. Estefânia ao Mosteiro de São Vicente de Fora foi retirada da página 229 da edição 29, Volume III, de 23 de julho de 1859 da Illustração Luso-Brazileira.

Copyright

© Jorge Francisco Martins de Freitas, 21-08-2022.
Proibida a reprodução sem autorização prévia do autor


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